Coordenadas para navegação na “nebulosa mística esotérica”: Breve Reflexão

15 de julho de 2023, 10:13



Texto de autoria de Sara Joana Dias**

 

“Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da ingenuidade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros, que mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas. Nós perdemos essa, e às outras também. 

    Ficamos, pois, cada um entregue a si-próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso. (…) Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida.” 

Bernardo Soares, O Livro do Desassossego.

 

Quando a ciência e a moralidade de uma sociedade racionalista e secularizada não explicam, ou não fornecem as soluções pretendidas, o indivíduo recorre por vezes, ao inexplicável quando frente a situações limite, ou quando simplesmente pretende estruturar o seu pensamento e o seu quotidiano. Recorre à espiritualidade, à magia, ao mito, de forma a encontrar respostas: “[h]oje, como ontem, o homem sofre profundamente com a morte dos seus entes queridos, imagem do seu próprio fim, hoje como ontem, defronta a enfermidade, a fome, a guerra… E se, realmente, venceu alguns dos velhos temores, perseguem-no outros, tão ou mais terríveis que os primeiros” (Araújo, 1994: 9-10).

Ao analisar as reconfigurações que o universo religioso apresenta nas nossas sociedades, devemos ter em mente o conceito de cultura: “[c]ultura ou civilização, no sentido etimológico mais lato do termo, é esse todo complexo que compreende o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, cit. in Cuche, 2003: 40). Podemos desta forma considerar cultura como um processo permanente de construção, desconstrução e reconstrução. Assim, ainda hoje, é possível observar que a religião afeta as predisposições e as representações individuais, moldando a própria cultura do indivíduo.

Outro conceito para reflexão, envolto em complexidade de análise é o de secularização. Secularização é um fenómeno complexo com múltiplas visões e interpretações, mas é um elemento importante para a compreensão das dinâmicas que se forjaram em torno da sociedade moderna no âmbito da religião. Se, se conceptualizar a secularização como uma antítese da religião e de todas as formas de espiritualidade, não será possível explicar o ressurgimento da magia e do esoterismo, senão negando a secularização. Consideramos, portanto, o posicionamento teórico que nos indica que, o significado profundo de secularização é o do declínio geral do compromisso religioso e não a sua extinção. Neste sentido, a religião deixa de ser o conhecimento edificador da visão do mundo, dos comportamentos e da ética, assistindo-se a uma diferenciação funcional. Porém, a secularização não resulta no desaparecimento completo da atividade e do pensamento religioso, não existe propriamente um desencantamento do mundo. Existe sim, uma segmentação, uma separação do processo unificador de visão do mundo protagonizado pelas instituições religiosas. Secularização não significa um aumento linear da descrença, nem que a sociedade se encontra mais cética. Pelo contrário, a secularização possibilitou o avanço do pluralismo e do trânsito religioso, uma vez que não havendo as amarras das instituições religiosas, o indivíduo pode manipular os bens simbólicos construindo os seus próprios arranjos religiosos, sem o medo de quebrar o eixo central de visão do mundo onde se encontra apoiado. Portanto, o que temos, são novas possibilidades de arranjos das racionalidades. Onde a racionalidade mítica e mágica se reorganiza com a científica, e com elementos das tradições religiosas clássicas, ou seja, a crença torna-se difusa e os universos de representação passam assim, a estar sujeitos a um outro dinamismo. Assiste-se a uma recusa de um modelo exclusivo de fé, e aparecem sistemas de representação compósitos, tendo por base uma pluralidade de fontes. É certo que algumas crenças se dissociam da organização religiosa, mas esta autonomização dos indivíduos em relação às instituições não é acompanhada por uma mudança do crer. Ao contrário do que algumas teses defendem, os sujeitos continuam a acreditar, o que se alterou foi a exclusividade da verdade e do sentido no interior de um monopólio institucionalizado de crenças. Assistiu-se à privatização e individualização da crença, fenómeno este intensificado por um pluralismo religioso que modifica a identidade religiosa do indivíduo.

Revelam-se inquestionáveis as transformações do fenómeno religioso operadas no contexto das sociedades atuais. Os mosaicos culturais encontram-se interpenetrados por universos de valores e símbolos exteriores globais, fomentados por uma sociedade globalizada e globalizante. Paralelamente, assiste-se a uma reconstrução seletiva dos sistemas culturais e simbólicos tradicionais, uma espécie de retorno ao passado, no sentido de manutenção ou recuperação de práticas criadoras de uma identidade. Exemplo disso, são as crenças esotéricas, instâncias produtoras de identidades e de memórias culturais.

Dentro do grande chapéu que é o esoterismo, encontramos inúmeras manifestações de religiosidades diversas, essas vivências não são exclusivas, mas articulam-se numa espécie de atração pelo mistério. O recurso a oráculos, artes divinatórias, magia, bruxaria, não é recente na tradição portuguesa. O recurso ao sobrenatural, antes práticas encobertas e estigmatizadas socialmente, hoje são vividas ainda com algum segredo, mas mais abertamente. A astrologia por exemplo, tem ganho um estatuto particular na nossa sociedade, talvez face a uma projeção mediática maior. Contudo, tal não acontece em todos os domínios, o recurso a videntes, cartomantes, curandeiros, ainda é vivido com uma certa aura de secretismo. Curiosamente, o conceito de esoterismo remete-nos precisamente para a privacidade, para o oculto, o secreto, o misterioso, o estranho, ou em grego esoterikós, ou seja, «peculiar aos de dentro, da intimidade».

São múltiplas as denominações deste modo de vivenciar a espiritualidade: “esoterismo”, “misticismo”, “ocultismo”, “ciências ocultas”, “nova gnose”, “New Age”, “nebulosa mística-esotérica”. Aliás, as divergências não estão apenas na denominação do objeto, mas na própria maneira de abordá-lo. No entanto, esta multiplicidade de denominações refere-se a inúmeras manifestações de religiosidades diversas, aglutinadas sob o teto de algumas características comuns. Estas vivências articulam-se com as demais religiões tornando cada vez mais rico e complexo o campo religioso. Aliás, estas crenças pululam um pouco por todo o lado o que permite ao indivíduo construir a sua própria religiosidade, misturando e combinando ideias, crenças e práticas. Expressões como “religious bricolage” e “religion à la carte”, de Luckmann e Bibby respetivamente, apresentam-se particularmente perfeitas para traduzir a atual realidade religiosa.

Numa sociedade profundamente racionalizada, a religião continua a desempenhar um papel importante. No entanto, esta sofreu algumas metamorfoses, o que não será estranho de equacionar face a este mundo em constante movimento. Face às incertezas que perpassam as sociedades atuais, surgem modalidades de crer renovadas ou recuperadas: “[o] politeísmo resulta da pluralização da cultura e do sentimento de que forças ocultas nefastas rodeiam de todos os lados a existência humana. As crenças tornam-se plurais, para poderem responder a esse sentimento” (Fernandes, 1998: 132). No sentido de apaziguar estas entidades míticas superiores, o homem elaborou, ao longo dos tempos, técnicas complexas, preparou intermediários habilitados, estabeleceu locais de peregrinação e delimitou espaços de particular incidência das mensagens divinas, deste modo: “[o] retorno do sagrado aparece, muitas vezes, como redescoberta e vivência de crenças e de práticas que permaneceram presentes na memória coletiva, recalcada durante séculos. O Cristianismo constitui, nestes casos, uma patine que reveste superficialmente as consciências das pessoas. Estalada a patine, afloram essas superstições. O regresso ao oculto e ao mistério vai-se generalizando […]” (Fernandes, 1995: 223). O inegável interesse que este tema suscita demonstra que não estamos tão afastados como, por ventura, supomos das crenças esotéricas. Como refere Umberto Eco: “ [s]e entrarmos nas livrarias italianas, até naquelas que dantes eram conhecidas como de «esquerda», podemos encontrar nas estantes onde apareciam os textos de Lenine e de Marx as obras das casa editoras especializadas em hermetismo, cabala, tarots e espiritismo” (Umberto Eco, cit. in Fernandes, 1995: 224).

Em Portugal, tem-se vindo a operar uma recomposição do campo religioso, talvez otimizado por um pluralismo crescente, por uma proliferação de conteúdos religiosos, mas também por uma espécie de “reencantamento” social da religião, potencializado por uma crescente visibilidade e oferta mediática destes serviços. Assiste-se a uma coexistência pacífica, da memória herdada de uma religião institucionalizada, com a (re)emergência de crenças paralelas. Acerca deste pluralismo de representações religiosas Teixeira Fernandes diz-nos algo bastante interessante que revela um pouco esta multiplicidade de crenças paralelas: “[a]s pessoas, no que se refere à religião, entram normalmente num certo jogo, colocando «uma vela acesa a Deus e outra ao Diabo». Estabelecendo um compromisso, que lhes dê sempre vantagem, sem riscos demasiados. Esta é a religião semi-mercantilizada” (Fernandes, 1995: 224).

Surge uma religiosidade difusa, na qual vários segmentos da população deixam de recorrer a um único sistema de sentido, constituindo as suas próprias crenças, construindo uma religiosidade própria. Procedendo a uma técnica de recorte e colagem, uma espécie de bricolagem caseira, que preencha as suas necessidades individuais e que ajude a embelezar o interior da casa interior (o self), o actor social metamorfoseia a religião e o sentido desta. A nova paleta de crenças cria um quadro que não contém apenas o preto e o branco, mas muitas áreas cinzentas, nas quais são rejeitadas e aceites determinadas variações e mensagens das religiões institucionalizadas, coloridas com outro tipo de espiritualidades, que permitam uma relação diferente com a realidade. Como refere D. Hervieu-Léger: “a modernidade religiosa é caracterizada pela individualização e, portanto, pela extrema pluralização das trajetórias de identificação que conduzem, eventualmente, os indivíduos a endossarem, retirando daí implicações práticas e extremamente variáveis a sua pertença «escolhida», numa linha de crença particular. Em parte, esta escolha prende-se com a instauração do novo regime da verdade religiosa, que faz progressivamente primar a verdade subjetiva, apropriada pelos indivíduos sobre a verdade objetiva, institucionalmente prescrita” (Hervieu-Léger, cit. in Leandro, 2002: 26).

Assim, a título de conclusão, é possível questionar se esta “nebulosa mística-esotérica” poderá funcionar como uma espécie de arca de Noé, onde se encontram representados todos os elementos da “espécie” religiosa, no sentido de perpetuar a religião no mundo moderno:

 “ (…) As crises do homem moderno são em grande parte religiosas, na medida em que são a tomada de consciência de uma ausência de sentido. Desde o momento em que sentimos ter perdido a chave da nossa existência, desde o momento em que já não sabemos qual é o significado da vida, estamos perante um problema religioso, pois a religião é precisamente uma resposta à pergunta fundamental: qual é o sentido da existência? … Nesta crise, nesta desordem, a história das religiões assume-se, pelo menos, como uma arca de Noé das tradições místicas e religiosas […]”. Mircea Eliade, cit. in Paulo Loução, A Alma Secreta de Portugal, 2002: 320.

 

**Foto de Mikhail Nilov

 

**Sara Joana Dias é licenciada e mestre em sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal).

 





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