A importância da sororidade no processo de luta das mulheres

08 de julho de 2023, 09:27



 

Texto de autoria de Juliana Cardoso Ribeiro*

 

Triste, louca ou má
Será qualificada ela
Quem recusar
Seguir receita tal

A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina

Só mesmo rejeita
Bem conhecida receita
Quem, não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

(…)

(Triste, louca ou má, Francisco, el Hombre)

                                                                                                                                                                                                                                                                             

Até bem pouco tempo, as mulheres “não eram dignas” de ter direitos tal como os homens” e viviam em uma posição submissa e de desigualdade na maior parte das sociedades. Este contexto tem mudado ao longo do tempo e muitos direitos em prol das mulheres já foram reconhecidos e adotados na legislação de vários países, em virtude da resistência e luta das mulheres dentro deste processo histórico. Tem sido uma luta longa e a mulher aos poucos vem ganhando espaço nesta conjuntura. Podemos lembrar aqui de alguns marcos deste processo. 

Após a Revolução Francesa, em 1789, as pessoas começaram a atinar-se para os seus direitos civis e políticos.  Seguindo este percurso, Olympe de Gouges escreveu, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e Cidadã, expondo reivindicações das mulheres, com o intuito de inseri-las neste processo revolutivo, mas não obteve êxito, face a opressão extrema sob a qual se encontrava a mulher naquela época. 

Em 1792, contudo, foi publicada a obra “Reivindicação dos direitos da mulher”, escrita por Mary Wollstonecraft, a qual surgiu em resposta à Constituição Francesa de 1791, em virtude da exclusão dos direitos da mulher do seu arcabouço, abrindo, com isto, perspectivas no universo feminino. Este texto, composto de 13 capítulos, pregava a racionalidade da mulher, no sentido de que ela alcançasse a sua maioridade e, em consequência, a sua igualdade (FARHERR, 2017). Frise-se que Mary Wollstonecraft tornou-se uma das principais representantes do feminismo liberal, surgido no século XVII e desenvolvido durante o século XIX (FARHERR, 2017). 

No entanto, foi somente 1893, através do Ato Eleitoral 1893, na Austrália, hoje Nova Zelândia, que a mulher teve direito ao voto pela primeira vez, sendo este o marco inicial dos seus Direitos Políticos. A partir daí, várias reivindicações foram surgindo. Entre elas, podemos mencionar a marcha de 15 mil mulheres ocorrida em 1908 nos Estados Unidos e que culminou na determinação do dia Nacional da Mulher naquele país, assim como a conferência Internacional das Mulheres Socialistas, a qual determinou o dia Internacional da mulher para o dia 19 de março, cuja data foi alterada posteriormente para 08 de março, face a pressão de mulheres russas, austríacas, dinamarquesas e alemãs, passando a ser uma data importante de representação e conscientização da luta das mulheres por seus direitos (Politize).

Nesta trajetória, houve luta. Mulheres morreram. No ano de 1913, por exemplo, Emily Wilding Davison morreu atropelada pelo cavalo do rei da Inglaterra, durante o esperado Derby Day, quando, com o objetivo de chamar a atenção para o movimento sufragista, tentou colocar um cartaz no cavalo e acabou sendo atingida. Apesar de rumores de que Emily tinha se suicidado, a verdade é que encontraram em seu bolso, uma passagem de retorno de trem, bem como um bilhete de entrada para o baile sufragista que seria celebrado no mesmo dia à noite, circunstância que refutou a tese do suicídio. A morte de Emily culminou na realização da primeira grande passeata em prol do voto feminino, a qual levou cerca de 6 mil mulheres às ruas de Londres (esta história é retratada no filme “as sufragistas”).

No entanto, foi somente após a segunda guerra mundial que as mulheres ganharam mais força, face a promulgação pela Organização das Nações Unidas, em 1979, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW) pelos Estados Membros, e que foi o primeiro Tratado Internacional com determinações sobre a promoção da Igualdade de Gênero.

De lá para cá aconteceram e vem ainda acontecendo muitas reivindicações pelos Direitos das Mulheres, muito embora ainda estejamos diante de um longo caminho a ser cruzado. Um exemplo disso são as reivindicações relativas à liberdade do seu corpo, e que se relacionam com a legalização do abordo. Para além disso, direitos básicos ainda são desprezados, em virtude da forte existência de preconceito e discriminação em relação à mulher. Mulheres, ademais, sofrem diversos tipos de violência e continuam em situação de vulnerabilidade. Assim, frequentemente são vítimas de feminicídio, violência doméstica e sexual, de tráfico de pessoas, entre outros crimes que acontecem em virtude exatamente desta sua condição. 

No que se refere à violência e a sua condição de vulnerabilidade, e antes que o leitor se questione sobre isso, importa ressaltar, muito embora não seja o nosso foco neste artigo, que apesar de haver dados evidenciando a violência entre os próprios homens, que atentam para uma maior chance do homem ser vítima de homicídio por um outro homem, se comparado à mulher, é importante frisar que a violência dirigida à mulher tem um cunho social e se diferencia da violência cometida entre os homens ou da mulher para o homem. Bourdieu, sociólogo francês que viveu entre 1930 e 2002, em seu livro “Dominação Masculina”, sustenta que a violência é um problema social, e por esta razão, foi aprendida pelos homens e absorvida pelas mulheres em um processo de “dominação simbólica”. Neste sentido, e se nos basearmos neste entendimento, podemos então compreender que a violência cometida pelo homem para com o homem mesmo, difere daquela cometidas contra as mulheres, uma vez que esta última é vista como um processo social e nada tem a ver com questões genéticas ou de superioridade do homem em relação à mulher. Basearmos a vulnerabilidade da mulher em questões genéticas, seria reforçarmos ainda mais as bases que culminam na violência contra a mulher e justificarmos todas as agressões que envolvem exatamente esta ideia de superioridade. 

No que diz respeito à violência cometida pela mulher contra o homem, é interessante salientar, seguindo os esclarecimentos dados por Elena Larrauri, que as situações de violência entre homens e mulheres possuem algumas diferenças que devem ser consideradas e que tornam as mulheres mais vulneráveis nos casos de violência doméstica. Segundo ela, há menos intensidade na violência cometida pela mulher contra o homem em casos de violência doméstica, e que faz com que o dano produzido seja inferior. Além disso, a finalidade também é diferente na medida que ela geralmente age em defesa de sua integridade ou de seus filhos. A sua motivação é na maior parte das vezes, pontual e não está caracterizada por uma pretensão global de intimidar e castigar, tal como acontece com a violência cometida pelo homem em relação à mulher. Por último, ela pontua que a violência cometida pela mulher não tem tendência de produzir uma sensação de temor eterna ou onipotente (Elena Larrauri in Alice Bianchini, 2010).

Lembremos, ainda, que a mudança do ambiente hostil somente poderá acontecer por meio da elucidação da população a respeito da igualdade e não violência à mulher, seja em sua forma física ou simbólica, e por  meio da luta e união das mulheres, em direção a outro rumo onde a igualdade entre o homem e a mulher deve imperar. É com base nisso que devemos refletir sobre a necessidade de sororidade, conceito o qual importa esclarecermos neste artigo. Para tanto, descrevemos abaixo a definição de “Sororidade”, dada pelo dicionário Priberam:

" 1. Relação de união, de afeição ou de amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs.

  2. União de mulheres com o mesmo fim, geralmente de cariz feminista". (Dicionário Priberam)

Frisa-se, assim, a necessidade de sororidade neste processo de mudança. É imprescindível que haja o apoio mútuo entre as mulheres em busca de cada objetivo. É crucial que a mulher liberte-se desta dominação simbólica em que se encontra e que enrijece a sua forma de pensar e agir e a impede de viver realmente a sua liberdade de “ser mulher”. Vivermos esta liberdade sem amarras é fundamental. Sejamos fortes e unidas nesta luta. Sermos fortes e independentes é também urgente. 

E como já vi críticas neste sentido, inclusive por mulheres, esclareço. Sermos fortes, não significa não termos sentimentos ou não querermos apoio. Sermos fortes e independentes não significa não podermos contar com o outro. Sermos independentes não significa desprezo pela atenção do outro, não se trata disso. Trata-se de sermos capazes de continuar e conquistar apesar desta falta. E não há nada de errado em relação a isto. O homem, aquele que se sente confortável, pode ser também parceiro nesta jornada de conquistas de direitos. Portanto, não confunda defesa de direitos com declaração de guerra aos homens. A mulher apenas necessita ter os seus direitos verdadeiramente reconhecidos, sem que haja  preconceitos, discriminações ou violências.

Nesta defesa de direitos é necessário união, tal como aconteceu anteriormente. Se observarmos a história dos direitos das mulheres, é notório que estas lutas aconteceram porque as mulheres se rebelaram através de grupos de mulheres que lutaram em prol deste direito de todas. É por causa destas mulheres que hoje, nós mulheres da contemporaneidade, temos direitos básicos reconhecidos, tais como  o direito ao sufrágio, ao trabalho, à liberdade de ir e vir, podemos viajar, escrever o que e onde quisermos (um dia éramos proibidas), andar sozinhas, e até mesmo a liberdade de escolher os nossos companheiros, maridos, ficar sozinhas, entre outros tantos direitos que foram conquistados no decorrer de um longo período. Com base neste processo de construção e aquisição de direitos, deixo aqui algumas indagações: Será que você, mulher, consegue se imaginar sem qualquer um destes direitos?

Tendo em vista o processo de dominação simbólica masculina, as mulheres que lutavam por estes direitos básicos e que parecem ser tão naturais hoje, também passaram por preconceitos ou discriminações naquela época.  Assim, considerando que estes direitos básicos foram negados e que esta luta causava discriminações, será que você, leitorax, não está repetindo este padrão da história em um processo de discriminação atual contra as mulheres que buscam e lutam por seus direitos? 

Precisamos de união, sororidade, apoio nas pequenas e grandes conquistas individuais e de grupos de mulheres. A mulher precisa ser forte e ao mesmo tempo ter sororidade durante o caminhar até os seus objetivos. É através da união que nos fortaleceremos e conquistaremos os nossos direitos, tal como tem sido ao longo da história. 

 

 

Referências Bibliográficas: 

 

BIANCHINI, Alice (2010), A mulher como pessoa vulnerável na relação de uma violência de gênero.

BOURDIEU, Pierre (2002), A Dominação Masculina, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

FARHERR, JAIME (2017), RESENHA: WOLLSTONECRAFT, Mary. “Reivindicação dos direitos das mulheres”. Tradução e notas de Andreia Reis do Carmo. São Paulo: Edipro/Boitempo, 2015, 272p [ISBN 978-85-7283-927-3], Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 3, n. II.

POLITIZE, (2021), O que são os Direitos das Mulheres.

DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA [em linha] 2008-2021, 

https://dicionario.priberam.org/sororidade [consultado em 14-04-2022]

 

**Foto: https://br.freepik.com/fotos-gratis/pilha-de-maos-de-alto-angulo-com-amigos_5965456.htm

 

 

 *Juliana Cardoso Ribeiro é Doutora em Sociologia pela Universidade do Porto (Portugal), Mestre em Estudos Europeus pela Universidade do Minho (Portugal) e graduada em direito pela Universidade Federal de Sergipe. É a idealizadora e criadora do Terraço da Gente, membro colaborador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Portugal) e membro integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Cultura e Consumo.

 

 





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